quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Escalas: como lidar com esse bicho de sete cabeças.

Uma dúvida que normalmente atormenta a nós guitarristas é: bom, e agora que conheço os shapes de várias escalas, e aí?

Dominar os shapes, modos, padrões, ou simplesmente desenhos de diversas escalas tem lá suas vantagens. E isso é um ponto positivo em tocar um instrumento de corda. Diferentemente do teclado, ou de instrumentos de sopro, em que os desenhos das escalas podem variar bastante conforme a tonalidade, na guitarra um mesmo formato de escala maior pode ser repetido para quase todas as tonalidades. O mesmo acontece com formatos de acordes, arpejos de acorde, temas melódicos, licks, riffs etc...

A principal vantagem é que diminui a carga de processamento mental necessário para memorização, treinamento técnico e muitas vezes facilita bastante a tarefa de transposição. Neste último aspecto, geralmente um capotraste resolve tudo em apenas alguns segundos, pois para transpor a tonalidade 1 tom acima basta posicionar o capotraste 2 casas a frente, e Tcharam! está feito o milagre.

Porém, todas as facilidades que os shapes nos proporcionam acarretam em uma desvantagem talvez muito maior, musicalmente falando: temos a tendência de nos tornarmos preguiçosos. Para exemplificar como isso acontece, pense em um flautista. Ele precisa pensar em nota por nota que está tocando, pois se ficar dependente de desenhos chegará a um modelo de processamento de informação caótico. De modo diferente, um guitarrista pode simplesmente treinar um padrão em duas cordas (o que geralmente chamamos de lick) e repeti-lo a cada grupo de 2 cordas. E isso faz com que possamos subir ou descer escalas sem necessariamente precisarmos de pensar nas notas que vamos tocar.

Mas, como pensar em escalas? licks e padrões são nocivos ou denotam falta de musicalidade, falta de criatividade do guitarrista? Devo tocar uma escala sobre cada acorde, ou uma mesma escala sobre toda a música respeitando a tonalidade? Se tem uma regra é: nada é regra!

Renomados guitarristas também usam licks ou padrões de escala num momento ou outro de suas composições ou improvisos e podem seguir a mesma escala por toda a música criando melodias muito bonitas, enquanto outros (muito comum no jazz) costumam se expressar tocando uma escala ou um modo para cada acorde (ou para cada centro tonal).

O que é importante, a meu ver, é entender as escalas, compreender as nuances, as notas que criam a sonoridade característica de cada escala e buscar explorá-las. A grande sacada é saber na prática "tirar" o som que a escala tem dentro de si.

Claro, tudo que estou dizendo aqui é baseado em minhas percepções, meu modo de interpretar, mas é muito importante ressaltar uma coisa: as escalas possuem sonoridades peculiares, mas o músico precisa saber extraí-la. E como fazer isto na prática?

1º ponto: notas de repouso:

Apesar da escala se desenvolver na maioria das vezes melodicamente, o maior efeito que nossos ouvidos consegue perceber ocorre harmonicamente. Assim, as notas que devem entrar nos tempos fortes dos acordes são via de regra as próprias notas dos acordes.

Exemplos:

1. Acorde de Cmaj7 - tonalidade Dó Maior - Modo Dó Jônio: as principais notas recomendadas para repousar sobre o Cmaj7 seriam a tônica, 3ª maior, 5ª justa e 7ª maior ou seja: C - E - G - B;

2. Acorde de B7 - tonalidade Mi maior (também em Mi menor harmônico): notas de repouso mais recomendadas seriam as próprias notas do acorde Si com sétima: B - D# - F# e A.

O segundo ponto que merece atenção é para as demais notas da escala. Elas podem atuar como notas de passagem (isto é, conduzindo a melodia para as notas do acorde) ou carregando a melodia para notas de tensão específicas que são característica da escala ou modo.

2º ponto: notas de passagem

Notas de passagem podem ser utilizadas na construção da melodia conduzindo para as notas do acorde. Entre notas de passagem podem ser utilizadas notas da escala, cromatismos ou notas fora da escala com aproximação de semitom.

Exemplo 1: Notas de passagem da escala ou modo:

1. Acorde de Cmaj7 - tonalidade Dó Maior. Aplicação de escalas: modo Dó Jônio ou Dó Lídio. 

a) a nota Si pode ser usada de duas formas principais: conduzindo a melodia para a nota Dó ou usada no tempo forte, por se tratar da sétima maior, dá ênfase na intenção do modo Jônio, que possui a sétima maior.

b) a nota Ré, por se tratar da nona maior de Dó, pode ser aplicada para dar a intenção da nona maior (que também é uma tensão característica do modo Jônio) ou pode conduzir a melodia para a nota Dó ou Mi (notas do acorde Cmaj7)

c) a nota Fá: por se tratar da 4ª justa, apesar de ser nota da escala diatônica de Dó maior, não é uma nota muito aconselhável para repousar sobre o acorde Cmaj7, pois a 4ª justa tende a criar um clima de instabilidade/ suspense. Porém, é excelente como nota de passagem e conduz muito bem para a 3ª maior de Cmaj7, que é Mi. Se a intenção do acorde for um Dó Lídio a nota F# pode ser usada para destacar a intenção do modo.

Exemplo 2: Notas de passagem fora da escala ou modo do acorde:

1. Acorde de Cmaj7 - tonalidade Dó Maior. Aplicação de escalas: modo Dó Jônio ou Dó Lídio.

a) A nota Si bemol pode ser empregada numa sequência com Si e Dó, criando um cromatismo enquanto conduz para a nota do acorde Bb B C.

b) A nota Fá pode anteceder um Fá sustenido e continuar num cromatismo para Sol, ou, no caso de a intenção ser do modo Lídio,  pode simplesmente conduzir a melodia para repousar no próprio Fá sustenido, evidenciando a intenção do modo.

c) O modo Dó Jônio possui as notas C D E F G A e B. Nesse modo as notas Bb, Db, Eb, Gb e Ab podem ser empregadas como notas de passagem entre as demais notas da escala. No modo Dó Lídio a única nota alterada em relação a Dó Jônio é o F#. Neste modo, a nota Fá passa a ser uma nota de passagem já que o F# agora é uma nota da escala do acorde.

3º ponto: notas características da escala ou modo

O terceiro ponto interessante a ser mencionado é que cada escala ou modo possui algumas relações intervalares interessantes que merecem uma ênfase no fraseado.

Por exemplo, a escala menor harmônica possui intervalos interessantes de semitom entre a 2ª maior e 3ª menor, 5ª justa e 6ª menor e 7ª maior e 8ª que se bem explorados apresentam muito evidentemente o tom exótico que a menor harmônica imprime. Porém, se estas notas forem abordadas de forma mais diluída, por exemplo, entre cada uma destas notas toca-se outra com distância maior que a de semitom, a menor harmônica pode soar mais jazzy.

A penta blues é outra escala que apresenta um exemplo interessante. A blue note, que nessa escala é 5ª diminuta, ou que na penta maior seria uma 2ª aumentada, é a nota responsável nesta escala pela sonoridade bluesy, que pode ser notada em várias melodias de blues, rock, heavy metal e no country.

Outro ponto interessante é que as escalas ficam mais ricas se enxergadas não apenas verticalmente mas também por toda a extensão do braço. Outra coisa importante é procurar visualizar arpejos de acordes dentro dos desenhos das escalas. Os modos também apresentam suas notas de ênfase, porém como os modos per si renderiam um outro texto desse tamanho por agora vou ficando por aqui.

A ideia pessoal é não olhar para escalas apenas como desenhos, shapes ou patterns para serem memorizados pelo braço da sua guitarra. Cada escala contém um tempero, uma nuance, uma cor e cabe ao músico saber explorá-la.




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